*Letícia Pineschi
O transporte clandestino rodoviário de passageiros não é nenhuma novidade, aliás a pirataria está presente em muitos serviços ou produtos que são alvos de ilegalidades e falsificações.
Durante os últimos anos, com o avanço da digitalização e a mudança do comportamento na aquisição das passagens rodoviárias, o velho busão pirata percebeu que corria o risco de perder seus pontos de assédio aos passageiros, quase sempre o entorno das rodoviárias, já que nelas os viajantes passaram a chegar com seus bilhetes já em mãos, comprados no e-commerce das empresas de ônibus.
Dessa forma tiveram de adaptar-se, automatizando suas atividades e acoplando a isso um discurso de inovação, disrupção e todos os outros jargões da transformação digital, surgiram então os aplicativos de “fretamento colaborativo”.
Sempre houve certo contingente de passageiros disposto a flexibilizar suas cautelas e arriscar suas vidas no transporte ilegal pela necessidade de passagens muito baratas, mas agora lidamos também com viajantes seduzidos e iludidos por essa distorção da realidade presente no novo discurso de venda do antigo serviço clandestino.
Um cenário preocupante para nossa sociedade e para a segurança viária se anuncia. Ônibus circulando em condições precárias, desrespeito ao consumidor, viagens canceladas, passageiros abandonados à própria sorte nos imprevistos das rodovias sem socorro operacional ou realizando itinerários tortuosos simplesmente para fugir das barreiras de fiscalização. Sem falar na falta de comprometimento com as condições de trabalho dos motoristas, profissional cuja função está diretamente ligada à segurança das viagens.
De acordo com um estudo publicado na revista Trabalho e Desenvolvimento Humano neste ano, a taxa de trabalhadores em aplicativos diversos com jornada entre nove e quatorze horas por dia subiu de 54% para 56,7%, situação alarmante se aplicada aos condutores de veículos coletivos de passageiros.
Por outro lado, empresas e terminais rodoviários regulares que têm padrões de qualidade, manutenção, programas ambientais, sociais, pagam tributos e geram empregos formais, têm assistido perplexos a uma campanha de desinformação popular.
Diante da complexidade do tema e medo da “cultura dos cancelamentos”, órgãos reguladores e até mesmo a Justiça, que deveriam antever prejuízos sociais, não encerram o assunto: ora isentam as plataformas de responsabilidades, ora são omissos. Enquanto isso a população confusa e vulnerável, mantém-se tentada a viajar no serviço intermediado pelos aplicativos em empresas desestruturadas, sem consciência da ilegalidade do transporte e consequências dessa escolha.
Nossa sociedade precisa buscar descortinar o modelo real proposto pela nova pirataria, sem acomodar-se na superficialidade de que seja esse apenas mais um movimento de digitalização, contra o qual os tradicionais resistem, pois essa condição vai se tornando lugar-comum enquanto se consolida a precarização dos serviços e pessoas são colocadas em risco nas rodovias.
Letícia Pineschi é conselheira da ABRATI – Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros