A Tarifa Zero mistura uma série de objetivos que não são cumpridos, a um custo extraordinário para as cidades
Por Anthony Ling do caosplanejado.com/
As mobilizações das “jornadas de junho” de 2013 foram motivadas inicialmente pelos protestos do “Movimento Passe Livre” (MPL) contra o aumento das passagens do transporte coletivo em São Paulo. Esse foi, provavelmente, o momento em que o conceito da “Tarifa Zero”, de que o transporte coletivo é um bem essencial que não deveria ser pago pelo usuário, ganhou notoriedade nacional.
Em entrevista ao Roda Viva à época, um dos representantes do MPL citou Hasselt, na Bélgica, como um exemplo de sucesso. Coincidentemente, a cidade belga extinguiu o modelo logo após a entrevista, e desde 2014 cobra pelo uso do transporte coletivo.
Desde então, cerca de 50 cidades brasileiras já adotaram a medida. Recentemente, o tema voltou aos holofotes quando Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo, divulgou que estaria estudando adotar a Tarifa Zero na maior metrópole brasileira. A notícia foi logo potencializada quando a equipe de transição do governo Lula sinalizou o estudo do modelo para todo país.
Os defensores argumentam que a Tarifa Zero garante e aumenta a mobilidade da população, principalmente de quem está na base da pirâmide de renda, que ora gasta um valor substancial da sua renda em transporte, ora tem efetivamente sua mobilidade reduzida ao deixar de realizar viagens que não cabem no seu orçamento. Exemplos recentes seriam a adoção da Tarifa Zero nas últimas eleições, assim como para a realização do Enem em diversas cidades.
Defensores da Tarifa Zero como o Idec, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, também argumentam que “o custeio público permite o controle direto da remuneração das empresas, ampliando a transparência e facilitando a exigência de critérios de qualidade”. Alguns também mencionam os benefícios ambientais de se incentivar o transporte coletivo em detrimento do uso do automóvel.
As sugestões de origem de recursos para custear a medida são variadas: propagandas nos ônibus, IPTU progressivo, taxação a aplicativos de transporte, taxa de congestionamento (também conhecida como pedágio urbano), recursos da área azul de estacionamentos em vias públicas e, ainda, a municipalização da Cide, imposto federal sobre combustíveis, proposta pelo então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, em 2013.
Aprofundemos, primeiro, na operacionalização. Cidades que implantaram a Tarifa Zero, tanto no Brasil quanto no mundo, normalmente são pequenas. A política é financeiramente custosa para um município e, via de regra, quanto maior o município, maior os ganhos de escala para viabilizar sistemas de transporte de massa e, assim, maior a proporção de viagens realizadas por transporte coletivo em comparação com cidades menores. Kansas City, nos Estados Unidos, que tem 500 mil habitantes, é uma das maiores cidades que implantou a política.
No entanto, a cidade não foge do tradicional modelo americano centrado no uso do automóvel, com apenas 3% daqueles que realizam viagens casa-trabalho utilizando o transporte público, com um sistema de transporte que carrega no ano o que o sistema de transporte de São Paulo carrega em menos de uma semana.
Tallinn, capital da Estônia, que também tem cerca de 500 mil habitantes, é outro exemplo em larga escala, e ficou longe de encontrar evidências sólidas sobre o sucesso dos objetivos almejados. Um dos resultados, por exemplo, foi a redução de 40% nas viagens a pé, capturadas pela gratuidade do ônibus.
Entre alguns dos maiores municípios brasileiros que implementaram a Tarifa Zero, Mariana (MG), Maricá (RJ) e Paranaguá (PR), apenas os dois últimos são classificados como cidades médias, passando de 100 mil habitantes.
Mais importante ainda, os três contam com receitas tributárias extraordinárias que as tornam cidades superavitárias para implantação de políticas públicas: Mariana recebendo R$350 milhões em royalties do minério, Maricá recebendo mais de R$3 bilhões de royalties do Petróleo neste ano, e Paranaguá recebendo cerca de R$100 milhões de ISS da sua atividade portuária, valores que ultrapassam significativamente o custo da Tarifa Zero em cada cidade.
A cidade de São Paulo se destaca no Brasil atualmente por atingir recordes no valor concedido para operadores privados com o objetivo de subsidiar a tarifa. Até a pandemia, o valor era de em torno de R$3 bilhões por ano. Em 2022, com a crise no setor de transportes no país inteiro, o valor subiu para R$4,2 bilhões e, em 2023, deve ultrapassar os R$7 bilhões, considerando a manutenção da tarifa no valor atual de R$4,40.
O valor é significativamente maior do que em outras grandes cidades que adotaram a prática do subsídio apenas recentemente, como Belo Horizonte e Rio de Janeiro, que previram em 2022 entre R$200 e R$300 milhões, respectivamente, em caráter emergencial.
Um dos principais motivos para essa discrepância é que em São Paulo as operadoras não possuem incentivos de eficiência operacional e a cidade sempre teve caixa para cobrir o prejuízo através de subsídios, que aumentaram sistematicamente ao longo dos anos, garantindo o lucro das empresas.
Uma Tarifa Zero reforçaria esse sistema de incentivos, sendo necessário, em São Paulo, mais cerca de R$5 bilhões anuais para cobrir o valor atualmente arrecadado pelas catracas. Como a Tarifa Zero tende a aumentar o número de passageiros no sistema (em 15% no horário de pico e em 25% no entrepico, segundo os estudos mais recentes), seria necessário também investir um valor maior no aumento de capacidade do sistema.
É certo que o orçamento paulistano é, também, o maior entre as cidades do país. Mesmo assim, um subsídio de mais de R$10 bilhões (somando o subsídio atual ao projetado pela Tarifa Zero), significaria tornar a Tarifa Zero uma das maiores linhas de despesa da cidade, sendo comparável ao valor de todos os investimentos somados que a cidade faz em um ano, projetado para R$11,5 bilhões em 2023 — entre, por exemplo, pastas importantes como habitação (R$4 bilhões), saneamento (R$1 bilhão) e educação (R$500 milhões). Mesmo diante de propostas para eventuais aumentos de arrecadação via impostos ou taxas, uma grande cidade como São Paulo enfrenta inúmeras outras necessidades orçamentárias, também essenciais, que poderiam utilizar dos mesmos recursos tributários.
Tarifa Zero: garantia de direitos ou subsídio regressivo?
Um dos problemas com a Tarifa Zero é que ela atinge todos os usuários, inclusive os que não pertencem à base da pirâmide de renda, que deveria ser o alvo de uma política social. Atualmente, inclusive, ocorre o inverso: os trabalhadores sem carteira assinada — e sem Vale Transporte — são os que mais pagam pelo sistema, já que possuem rendas menores e não se enquadram em categorias que possuem descontos ou gratuidades, como estudantes e idosos.
Na prática, dinheiro não é carimbado, e se abre mão de ofertar serviços essenciais àqueles na base da pirâmide em troca de isentar a passagem de outros que teriam capacidade de pagar. Segundo a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), o impacto médio das gratuidades hoje praticadas nos sistemas municipais das capitais brasileiras, que não seguem critérios de renda, é cerca de 20% do valor da tarifa.
Por equivalência, uma simples substituição do modelo atual de gratuidades para um critério de renda já possibilitaria a implantação da Tarifa Zero para 20% das tarifas pagas pela parcela mais pobre da população, sem impactar no preço nominal das tarifas. Se o objetivo fosse exclusivamente social, seria mais efetivo implementar uma espécie de “Bolsa Transporte” aos passageiros mais pressionados pelo preço da passagem.
Como a Tarifa Zero isenta uma grande massa de passageiros que não são tão sensíveis ao preço da passagem, o custo marginal desses subsídios vai além da política social, visando outros benefícios, como o incentivo ao uso do transporte coletivo sobre o uso do automóvel. No entanto, aqueles que migraram para o transporte motorizado individual — seja automóvel ou motocicleta — dificilmente retornam ao ônibus a partir de uma tarifa mais barata.
Motoristas de carros são menos sensíveis ao fator preço, sendo a Tarifa Zero uma política com efeito praticamente nulo para levar motoristas de carros para o transporte público. Já as motos correspondem em São Paulo a apenas cerca de 2% dos deslocamentos e, embora o preço baixo da moto seja realmente competitivo frente ao transporte público, pesquisas mostram que é a agilidade da motocicleta o fator decisivo para a migração.
Experiências com a Tarifa Zero pelo mundo mostram que o ônibus acaba “roubando” principalmente os deslocamentos que seriam feitos a pé ou de bicicleta, reduzindo parte dos ganhos ambientais que justificariam a medida.
A ideia de que uma Tarifa Zero permitiria maior controle de custos e fiscalização das empresas também encontra pouco respaldo prático. Preços existem justamente para equilibrar a oferta e demanda por produtos ou serviços, incentivando melhores práticas de negócio. Pelo fato do transporte ser considerado um direito social e, via de regra, fortemente regulado pelo setor público, utiliza-se o conceito de “tarifa”, preço determinado pelo Estado, como um substituto próximo.
Como argumentado pelo pesquisador Nils Fearnley, do Institute for Transport Economis da Noruega, sem uma tarifa não é possível praticar uma regulação entre oferta e demanda dos passageiros entre horários de pico e fora de pico, por exemplo, podendo até isentar a tarifa dependendo do dia e do horário da semana.
Marcos Paulo Schlickmann, também já escreveu aqui no Caos Planejado que a tarifa zero e a ausência de um pedágio urbano para automóveis, por exemplo, são dois lados da mesma moeda, representando em ambos casos uma ausência de tarifa pelo uso de um recurso, resultando em sobreuso.
Sem a tarifa perde-se uma “âncora”, mesmo que simbólica, de busca por eficiência operacional. Uma das evidências é que, após a implantação da Tarifa Zero em Tallinn, na Estônia, houve uma grande melhoria na percepção dos passageiros da qualidade do serviço, provavelmente pela redução das suas expectativas ao pagar um preço menor.
Ou seja, sem a referência de preço, não há incentivo, senão pressão política, para melhorar o serviço ou evitar um aumento gradual do subsídio ao longo do tempo. Okamoto e Tadakoshi, comparando a rede de transporte de Tóquio com outras grandes cidades do mundo, são categóricos: “Os subsídios para custos operacionais em países ocidentais não incentivam operadores de transporte a serem eficientes e lucrativos. Há o risco de que estes subsídios possam gerar gastos governamentais nacionais e locais fora de controle e o caminho adotado por Tóquio — com a expectativa de que operadores ferroviários administrem suas próprias finanças operacionais — certamente tem vantagens.”
Mesmo não sendo prioridade para um sistema de transporte público, a busca pela sustentabilidade financeira é um objetivo que direciona a eficiência operacional. Andy Byford, que já esteve à frente da Autoridade de Trânsito de Nova York e, mais recentemente, da Transport For London (TfL), corporação responsável pelo transporte da Grande Londres, foi entrevistado durante a pandemia a respeito da sustentabilidade do sistema da capital inglesa.
Byford sempre defendeu corretamente que cortes operacionais são desastrosos para o sistema, pois levam à “espiral da morte” do transporte público: redução da demanda de passageiros, uma pressão mais alta no preço das tarifas que, por sua vez, reduz ainda mais o número de passageiros.
Embora o governo inglês tenha acordado um pacote de salvamento financeiro para o sistema de transporte de Londres, foi condicionado a um corte de custos da própria TfL, e Byford deixa claro a busca pela sustentabilidade financeira e o orgulho do fato de que, entre 2018 e 2020, a TfL operou seu sistema sem subsídios externos — excluindo a taxa de congestionamento, que faz parte das receitas da TfL.
Ao zerar a tarifa e continuar subsidiando operadores e não passageiros, se elimina mecanismos de equilíbrio entre oferta e demanda, assim como pressupõe a continuidade do sistema de incentivos que levou ao aumento gradual de custos do sistema de transportes de São Paulo, sem a contrapartida do aumento da sua qualidade.
Como já foi dito, seria mais efetivo uma espécie de “Bolsa Transporte” àqueles que estão na base da pirâmide de renda, por exemplo, aqueles que possuem direito ao Auxílio Brasil, mantendo uma tarifa que reflita mais próximo os custos operacionais.
A Tarifa Zero mistura uma série de objetivos que não são cumpridos, a um custo extraordinário para as cidades — principalmente as grandes cidades que tem robustos sistemas de transporte — piorando o sistema de incentivos de cidades que já possuem subsídios operacionais.
Além disso, os objetivos sociais buscados pela Tarifa Zero podem ser atendidos de formas mais eficazes, permitindo excedentes financeiros para que as cidades consigam executar outros investimentos prioritários para garantia dos direitos dos seus cidadãos.