Fernando Fleury

É grande a polêmica em torno da votação do Projeto de Lei 3.819, na pauta da Câmara dos Deputados, que estabelece parâmetros para a regulamentação do transporte rodoviário de passageiros e para a expansão estruturada do setor.

Aqueles que são contrários à proposta dizem que ela cria barreiras à entrada de novas empresas no mercado e eleva custos regulatórios. Na minha avaliação, essa é uma análise completamente equivocada. Em alguns casos, mal-intencionada. O que o projeto prevê é justamente o contrário: defende a modernização do regulamento do sistema de transporte rodoviário de passageiros a partir de balizas claras, válidas para todas as empresas candidatas a operar no sistema, possibilitando uma abertura sadia do setor e a preservação de um padrão adequado de qualidade ao serviço.

Certamente compartilho da opinião segundo a qual a entrada de novos players favorece a competição e traz benefícios aos passageiros. No entanto, lições aprendidas com a experiência de outros países recomendam cautela com processos de abertura feitos de forma abrupta e pouco criteriosa.

É o caso do registro histórico de alguns de nossos vizinhos – Argentina, Chile e México, por exemplo – onde o processo de desregulamentação do transporte rodoviário ocorreu de forma repentina e intensa nas décadas de 1980 e 1990.  Num primeiro momento, a abertura propiciou redução de tarifas e o aumento da competição nas ligações mais importantes.  Passada a euforia inicial, o processo resultou no abandono de centenas de linhas consideradas pouco lucrativas e na falência de diversas empresas. Ao final, restou uma forte concentração da operação nas mãos de poucas operadoras, não mais do que quatro ou cinco empresas por país, que atuam somente onde querem, isto é, nos trechos mais rentáveis.

Na Inglaterra e alguns países da Europa que passaram por experiências parecidas a existência de uma rede ferroviária bem estruturada preservou o direito da população ao transporte. Nesses países, o modal rodoviário é eventualmente uma opção, mas é o trem que garante a maior parte dos deslocamentos. No Brasil, onde milhões dependem dos ônibus para viajar – a trabalho, para estudo ou lazer – o que aconteceria se as empresas se recusassem a operar linhas que considerassem não rentáveis?

A garantia do transporte como serviço essencial e direito social – como estabelece a Constituição brasileira – só existe num sistema público estruturado, operado por empresas qualificadas, habilitadas tanto do ponto de vista técnico quanto financeiro a oferecer aos passageiros um serviço seguro e de padrão aceitável. Toda competição é bem-vinda, desde que se respeite a vida e os direitos dos passageiros, condições justas de trabalho para os profissionais do setor e regras e normas válidas para todas as empresas.

Por isso o PL 3.819 reforça a importância da etapa de habilitação das empresas interessadas em operar no sistema. A exigência de um capital social condizente com as responsabilidades de quem transporta milhares de cidadãos é a garantia de que, no caso de um acidente, por exemplo, o passageiro estará assistido e terá seus direitos assegurados.

Uma outra confusão em relação ao projeto de lei diz respeito aos sites e aplicativos de vendas de passagens. Ao contrário do que afirmam alguns de maneira oportunista, não há qualquer restrição no texto ao funcionamento desses serviços, que existem há tempos e, para o bem do sistema e de seus passageiros, continuarão a trazer inovação, conveniência e comodidade para todos. O que o PL 3.819 busca impedir é a utilização ilegal do sistema de fretamento de ônibus para a venda de bilhetes individuais pela internet, por constituir concorrência desleal e desrespeitar normas e garantias do sistema regular de transporte.

Quando o País discute o futuro e a modernização do transporte rodoviário de passageiros, é importante também aprender com a experiência do setor aéreo. O marco regulatório do transporte aéreo foi construído ao longo dos anos, com aperfeiçoamentos e melhorias contínuos. O sucesso da abertura feita pela ANAC está diretamente ligado à regulação para a qualificação dos operadores interessados a ingressar no sistema. Dessa forma, foi possível conquistar uma melhoria paulatina e significativa do serviço. E estabelecer regras para impedir, por exemplo, que aviões clandestinos pudessem decolar de pistas paralelas às dos aeroportos…

Também no transporte rodoviário de passageiros a cautela de hoje possibilitará um futuro melhor para todos. Por essa razão, o PL 3.819 estabelece a necessidade da realização de estudos de viabilidade para que a sustentabilidade do sistema não seja comprometida. Não é admissível que a segurança, os direitos e as garantias há muito conquistados pelos passageiros sofram um retrocesso. É hora de andar para frente.

Fernando Fleury é professor da Fundação Instituto De Administração e consultor da Abrati – Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros.